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Posts Tagged ‘Adélia Prado’

Esquecimentos

‘O que a memória ama fica eterno. Te amo com a memória, imperecível’ – Adélia Prado

Sou lesado dos neurônios patrões das lembranças curtas. Esses fatos corriqueiros e práticos que nos ajudam a sobreviver. Esqueço-me alguns rostos não selecionados, datas e horários com a facilidade que se esquece aquilo que não nos comove. Impossível recordar nomes de presidentes, datas de aniversários e presságios do fim do mundo.

Minha alma sofre de envelhecimento precoce. Como os velhos acometidos de escleroses e males da mente, assaltam-me as lembranças antigas, perdidas nos quadros amarelados da vida e em retratos mofados guardados em armários escuros. Amo a infância, a que vivi e a que criei nas lacunas de minhas lembranças. Sua crueldade e beleza. Dessas cenas me alimento e são elas que me atormentam e me redimem do presente.

Carrego com uma clareza ímpar aquelas conversas raras nos momentos em que a superfície de nossas máscaras foi transpassada e tivemos um momento de comunhão, profundo e simples. Ouço as canções que amei em tempos atrás e são elas que me guiam para o que está por vir.

Ainda sofro com os que partiram e que nem ao menos conheci. Leio seus textos e cartas de amor, ouço suas canções, histórias e versos, alimento-me de seus quadros e minha alma geme as dores da despedida sempre se repetindo.

Mas dos que me rodeiam, me exigem e me ofendem, desses me esqueço. São leves demais para cavucar minha carne. Suas afrontas e palavras-seta mal chegam aos meus ouvidos. Suas declarações de afeto-desespero não fazem amor comigo. Vejo-os com rostos indefinidos como são as telas dos pintores hesitantes. Ouço sua voz como música ruim que tão facilmente são descartadas.

Esqueço-me deles não por desprezo ou mania seletiva. Deles desapego-me para perdoar suas lacunas e facilidades rasas. Por mais que tente gravar com meu olhar atento suas histórias de conquistas, anseios e glória, quando passam não as rememoro mais…

Deslocado de onde estou, esqueço o chão que piso e dos muros que me cercam. Estou outro, suspenso nesse intervalo sem fotos nem fatos, acompanhado dos que partiram e sustentado somente por memórias efêmeras.

Nesses lapsos e desencontros, de vez em vez sou agraciado com o rosto de alguém, esquecido de si mesmo e seu entorno, que me reconhece dessas terras ausentes, dos retratos antigos e desses mares embalados pelas cantigas de outros tempos. Faz-se então um presente sólido e certamente desse raro instante, me lembrarei por toda a eternidade.

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A mim que desde a infância venho vindo

como se o meu destino

fosse o exato destino de uma estrela

apelam incríveis coisas:

pintar as unhas, descobrir a nuca,

piscar os olhos, beber.

Tomo o nome de Deus num vão.

Descobri que a seu tempo

vão me chorar e esquecer.

Vinte anos mais vinte é o que tenho,

mulher ocidental que se fosse homem

amaria chamar-se Eliud Jonathan.

Neste exato momento do dia vinte de julho

de mil novecentos e setenta e seis,

o céu é bruma, está frio, estou feia,

acabo de receber um beijo pelo correio.

Quarenta anos: não quero faca nem queijo.

Quero a fome.

– § –

Esse é um daqueles textos que, de forma abrupta, nos provocam uma admiração misturada com inveja, pelo desejo de reivindicar sua autoria. Quisera eu ter escrito, pois ele traduz o que sinto todas as vezes que a fatídica data martela mais um ano em meu calendário particular.

Ainda não fiz quarenta anos, mas certamente ainda escolho a fome à faca.

 

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